Nó Vital


Querida Clarice,

Recebi sua carta alguns anos depois. E sinto como se há muito andasse mergulhada em mares que desconheço. Deixei-me levar pela força da correnteza, esquecendo-me da fragilidade do corpo, do enrugamento da pele e, sobretudo, que a nossa alma também precisa respirar para não envelhecer muito antes.

Eu me desliguei da minha própria consciência, desconectando-me de mim, fechando os olhos para minhas necessidades vitais. Não falo da água e do pão, que sustentam o corpo, mas das vontades da alma – que são o alimento da vida e de toda nossa existência. Da vontade da alma de expandir-se o tanto quanto possa, de trair as tradições, de ser o que é com a liberdade possível, que não é absoluta, mas já é algum alargamento de fronteiras. Eu sufoquei essas vontades a ponto de não estar atenta a mim. E como é triste não estar atento a si, é como viver uma vida ditada pelos outros – que também é o mesmo que deixar de viver.

Sim, minha irmãzinha, achei que pudesse levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma, fui negligente com meus deveres comigo, subestimei os poderes do tempo e do ambiente sobre mim. Eu suspeitava da possibilidade de transformação, mas não contava que pudesse afastar-me tanto assim de quem sou. E que já não sou mais pelo instante que passa. O quanto na verdade foi afastamento e o quanto foi mudança? Embora estivesse mudando, deixei de me acompanhar.

Não há forma de sairmos ilesos da vida. E por mais que você diga o contrário, eu já não me sinto toda viva. Tomar ciência disso é muito duro, minha querida. Viver o luto da própria vida é contraditório, é viver diariamente a própria morte – quando para viver a própria morte só se estando morto – é como experimentar delírios de brincar de Deus.

Pergunto-me, há quanto tempo venho suprimindo o meu nó vital? Respeitando os outros mais do que a mim. Por que aceitar pactuar com a vida de terceiros deixando de lado as necessidades da minha própria existência? “Respeite a você mais do que os outros. Respeite suas exigências.” – você me disse. Você tinha toda a razão, tudo isso teve um preço muito alto – e que quase me custou a própria vida. Não há maior solidão do que estar ausente de si.

Beijos,

Sua irmã de alma.

1 comentários:

  1. ... não há forma de sairmos ilesos dessa vida ! Foram tantas cascas de cebola ou finas asas de barata que coloquei em minh'alma, em meu corpo, em minha cara, que já não sei nem mais qual delas me pertence, qual me é ! Ser é respeitar as nossas exigências. Mas como cobrarmo-nos nossas exigências se as exigências de terceiros dependem de nossas ações ? Já não posso Ser EU, por que tenho que ser nós ! Não há forma de sairmos ilesos dessa vida, mas há como nos adaptarmos, sendo um pouco de cada um a quem amamos.

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